A professora Lorenz tem uma profecia ousada: os avanços científicos em sua área de pesquisa e atuação – a engenharia genética – vão terminar por “tornar Deus obsoleto”. O dom de fabricar vida deixaria de ser prerrogativa divina para tornar-se uma potência humana: artífices de organismos, nós humanos nos tornaríamos também os hackeadores de nossos próprios corpos – querendo recriá-los sempre, aprimorando a matéria “natural” com nossa cada vez mais profunda intervenção técnica. A promessa de Lorenz revela outra faceta da “morte de Deus” que Nietzsche não chegou a conceber – um deus morto pela genética.
Estas cenas que inauguram a série alemã Biohackers, produzida pela Netflix e criada por Christian Ditter, deixam claro que estamos diante de uma nova encarnação da figura arquetípica do cientista megalomaníaco à la Viktor Frankenstein (refiro-me à obra-prima de Mary Shelley, matricial para toda a história da cultura sci-fi e um dos romances mais magistrais da história da literatura).
Só que agora, os Frankensteins podem sair com o visual de uma loira de olhos azuis. It’s evolution, baby! Parabéns ao primeiro mamífero a usar calças!
À primeira vista, Lorenz passa a impressão de ser uma mulher respeitabilíssima, audaciosa, que confronta os velhos paradigmas científicos e acadêmicos em sua luta para salvar a Humanidade das doenças que a afligem. Sua ambiuguidade ética logo se revela, seu “compasso moral” começa a estar sob nossa suspeita e escrutínio, conforme Lorenz vai caindo num discurso parecido com este: todo Viktor precisa sacrificar alguns Frankensteins – alguns ovos quebrados para fazer a omelete! – em seu caminho para a glória imorredoura como benfeitor da raça humana.
Tornar deus obsoleto, este plano, pode soar a muitos como uma arrogância descabida e insuportável da professora Lorenz (ela odeia de fato a humildade e recomenda a Emma Engels, no começo da história, que sejam confiante, de cabeça erguida, “empoderada” e não modesta, altissonantes e poderosa, não cabisbaixa e servil…). Uma mulher, uma cientista, uma artífice de novos corpos, vaticinando a morte do antigo deus, torna emblemática esta cena crucial que nos introduz a Lorenz.
Lorenz, profetizando diante seu alunado, inclusive diante de uma Emma Stone que espera devorar uma vingança saborosa ainda que ela seja um prato que se come frio, é o prólogo perfeito à série e suas tensões. São tensões que evocam os dramas do nosso zeitgeist, de um contexto sócio-político em que alguns humanos manejam a matéria biológica como se quisessem aposentar todos os deuses e tornar a tecnologia, guiada por nossa espécie, numa possível panacéia universal. Proliferando Frankensteins e pandemias viróticas de zoonoses por conta dos excessos e das violações éticas e jurídicas deste processo Antropocênico…
A tecnologia e a ciência só seriam passíveis de se tornam panacéia, este plano ideal só poderia funcionar a contento, caso fôssemos sábios em massa. Mas não somos, é evidente, a sabedoria é rara, escassa e não se vende no Wal Mart… E quase tudo no caos do mundo revela que somos cegos seguindo loucos rumo a abismos sem fundo, na desnorteada ausência de uma sabedoria que multidões nem mesmo gastam uma gota de suor em seu encalço…
Em uma das primeiras aulas para a turma de calouros do curso de Medicina, na renomada universidade de Freiburg, a professora Lorenz prega do alto de sua cátedra: “a biologia sintética nos transformará de criaturas em criadores.” É nesta vibe de scientists playing god que somos lançados. E logo a angústia toma conta junto com o questionamento: estes cientistas são anjos, ou são demônios? E a resposta não tardará a ser: uma mistura de anjo e demônio, como tudo que é humano, animal que de bestial e de genial misturados tem muito.
É um mundo de contradições misturadas que explodem neste caos em que vivemos imersos, cúmplices e colaboradores deste caos, ainda que tentemos também, às vezes, e alguns mais que outros, fazer advir um pouco mais de cosmos. De Harmonia. Diante de centenas de pares de olhos que a observam em seu palco, a Professora Lorenz parece se alçar a esta perigosa húbris tão des-harmonizadora.
No início da série, ela anuncia que deus é uma hipótese de que não mais necessitamos, uma peça de antiquário a ser jogada na lixeira da história. Mas seu projeto é antropocêntrico até a medula, e concebe a possibilidade ilusória do humano desconectado da animalidade pois alçado “tecnicamente” a um status superior. Ela quer tornar tanto deus quanto a animalidade obsoletos – e este último elemento, por ser real e concreto, não é exterminável, ao contrário do primeiro. Veremos a morte de deus, sem dúvida, bem antes da morte do animal.
Com o último animal humano morre qualquer representação de um deus, ainda que a carne animal atéia em sua verdade concreta prossiga os dramas da evolução – até que se invente, de novo, outros animais capazes de delirar deuses e transformarem-se em monstros enquanto pretenderem estarem realizando o que há de mais santo e sagrado.
A obsolescência programa do Sr. Deus é outro dos temas fulcrais de Biohackers. Permitir ao Sr. Deus enfim se aposentar está entre as intenções ostensiva da Tia Lorenz. Chega de esperar pela graça do Criador, sejamos nós mesmos os criadores e recriadores de nós mesmos – este é o ethos de Lorenz, e é uma galáxia inteira de questionamentos éticos que a série traz a tona, ajudando em nossa reflexão.
O fato de Lorenz temer a figura fantasmática da “Comissão de Ética”, e de a princípio confundir Emma Engels/Mia Akerlund como uma espiã que trabalharia incógnita em prol da temida Comissão de Ética, indica que ela não dorme com a consciência limpa dos que jamais conhecem a insônia. Não transparece em sua face, mas Lorenz esconde seus tormentos morais do mundo – e defende-se de Emma pois esta é justamente, como a “mosca irritante” que era Sócrates, o “ferrão moral” que quer picá-la.
Há em Lorenz, claramente, o retrato da húbris – a desmedida de suas ambições começa a revelar vários riscos subjacentes que não tardarão em vir à tona. Pois nem todo aluno é uma ovelha passiva e obediente. E nesta turma há uma certa Emma Engels, ovelha negra da neo-fazenda de bioengenharia eugênica…
Lorenz também tem seus monstros cuidadosamente escondidos no armário – ou melhor, tem segredos em sua HD que Emma Engels se esforçará por hackeare revelar. O hacking informacional está no epicentro da série, que revela a extensão do fenômeno da informação: a genética também é um labirinto de poderes que visam se apossar da informação genética, essencial para o estudo das leis e das possibilidades da subversão humana desta informação inscritas nos recessos profundos da célula, no segredo mais excruciante da matéria viva.
Emma Engels será a encarnação da figura subversiva de uma juventude que aprendeu a respeitar, ou mesmo idolatrar, uma nova estirpe de heróis. Um herói de destino transgressor, que acolhe com um certo amor fati o martírio sofrido por ter se apegado a uma convicção moral e uma ação política a ela sintônica. Um herói que sangra e sua e geme, mas não arreda pé da convicção ética estar fazendo a coisa certa, apesar das adversidades. Herói que se manifesta em figuras como Edward Snowden, Julian Assange, Alexandra Elbakyan etc.
A professora Lorenz, naquele início de semestre com que a série se inicia, não imaginava que uma de suas alunas seria a protagonista de uma espécie de drama do whistleblower na aldeia global “unida” pela cibernética e pela rede mundial de computadores…
Em 6 episódios, a primeira temporada de Biohackers fornece elementos pertinentes para uma reflexão sobre bioética na conjuntura tecnocientífica atual: Lorenz encarna uma figura de poder acadêmico e científico que passa a se utilizar de organismos humanas como cobaias para seus experimentos supostamente bem-intencionados. De boas intenções, diz o dito, ouçamos com esmero, o inferno está cheio. A terra é feita infernal também pelas boas intenções de quem não se privará de pisar nos crânios de 200 crianças mortas para cumprir o fim sagrado de sua boníssima intenção…
Em um de seus confrontos mais tensos, Emma e Lorenz se entrechocam por terem diferentes mindsets, diversas percepções sobre ética: Emma acusa Lorenz de tratar os humanos, inclusive ela mesma e seu falecido irmão, como “guinea pigs” em seus experimentos. A violação do preceito ético tão destacado por Kant: nunca use outro sujeito como apenas meio para um fim. Ou seja, não transforme em objeto (marionete) quem merece ser tratado como sujeito autônomo.
Lorenz, portanto, serve como a encarnação de uma face da vilania contemporânea que se manifesta na violação secreta, ou seja, mantida escondida do escrutínio dos cidadão, de normas jurídicas e éticas elementares, consensuais, pactuadas, no trato experimental com a matéria viva. Eis um tema imenso, explorado com maestria na obra de filósofos como Hans Jonas e Michel Serres, de importância incalculável para nós no século 21 e vindouros.
Biohackers mostra que esta poderosa e enigmática mulher que é Lorenz não está sozinha na transgressão de fronteiras bioéticas, que isto é widespread, que não há nem mesmo possibilidade efetiva de retornar a um mundo mais biologicamente seguro. Estamos condenados a um futuro repleto de biohacking – nossos corpos estão em ágil mutação em meio à Sexta Extinção em Massa da biodiversidade planetária…
Acredito que esta talvez seja a primeira obra significativa da teledramaturgia a colocar em foco, no centro de atenções da opinião pública, aquela fração da juventude de países afluentes que hoje adere ao “biohacking” e constitui subculturas devotadas ao “faça-você-mesmo” biológico (DIY-bio).
Mesmo que seja para a realização de experimentos aparentemente pouco perigosos, como a “fabricação” de um rato que brilha no escuro ou de plantas de cânhamos fosforecentes. Este DIY, começo a perceber, representa uma nova faceta da contracultura, conecta-se com os movimentos do software livre, da cultura open source, dos certificados creative commons, aplicando tudo isto ao campo do bios.
O personagem Ole, que providencia a maior parte do alívio cômico da série, é justamente aquele que, de maneira desastrada, insere em sua carne os implantes, chips e gadgets que vai inventando, motivado principalmente pelo desejo de dar um boost em seus seguidores nas redes sociais. Sejam bem-vindos à era dos Narcisos, cegos à alteridade, trancados em bolhas, que transformam seus corpos em campos experimentais para radicais mudanças somáticas e identitárias.
Como Black Mirror, Biohackers também revela a extensão assustadora da luta atual pelo capital narcísico negociado freneticamente nos cassinos digitais da Web.
Desvelando todo um universo ainda pouco explorado pelo cinema contemporâneo, a primeira temporada centra-se no embate entre a Professora Loren e Emma Engels, uma das aspirantes a médica que desponta como “aluna problema”: nome na lista de chamada, ela aparece com o nome Mia Akerlund; na real, é Emma Engels, que está escondendo sua verdadeira identidade enquanto tenta hackear as informações que esclarecem seu passado traumático enquanto cobaia do projeto Homo Deus encabeçado pela professora Lorenz.
Emma Engels é a única sobrevivente de sua família – e a série explora, talvez de modo apelativo demais, o drama da orfandade. A “motivação” de Emma é sempre colocada na perspectiva de uma órfã injustiçada, que perdeu seu irmão gêmeo quando este tinha 10 anos de idade, e que depois esteve no carro cujo crash fatal levou a vida de seus pais – e ao qual ela só sobreviveu por um triz.
Flashbacks nos lançam de volta à cena traumática do acidente: a pequena Emma, de ponta-cabeça dentro do carro batido onde estão os cadáveres de seus pais, vê aproximar-se do cenário uma mulher que rouba alguns documentos e deixa a criança ali para morrer. A vilania de Lorenz desvela-se nesta cena-chave: a respeitável cientista na verdade esconde do mundo os esqueletos no armário que são seus inconfessáveis experimentos genéticos.
Será tarefa de Emma, com auxílio de seus dois namoradinhos e de sua república estudantil de excêntricos biohackeadores, revelar as entranhas do Projeto Homo Deus tocado em sigilo por Lorenz.
Lorenz, é claro, veicula um discurso auto-celebratório onde diz: sempre quis curar as doenças incuráveis, colaborar para um mundo onde não nascessem crianças com problemas genéticos etc. Porém, as investigações de Emma e seus comparsas revelam que Lorenz violou vários preceitos éticos e jurídicios elementares, infectando de propósito mais de 200 fetos para testar neles seus conceitos e práticas de terapia genética. É assim que Biohackers levanta o fantasma do genocídio eugênico na Alemanha de 2020 – ainda que não seja possível atribuir a Lorenz apenas a vilania, já que nesta personagem também se mistura uma boa dose de heroísmo.
Lançada em 2020, Biohackers veio a público em meio à pandemia de covid-19, tornou-se uma aparição estética problemática justamente por propor, em outra de suas cenas-chave, que um vírus poderia ser intencionalmente inoculado dentro de insetos mutantes e depois utilizado como arma de uma espécie de ataque terrorista com arma biológica. A série já abre com a cena em que Mia/Emma, dentro de um trem, começa a atender pessoas que começam a cair desmaiadas.
Já assistimos a thrillers sci-fi semelhantes a este no passado – caso de Gattaca (A. Niccol), Raising Cain (B. de Palma) ou Meninos do Brasil (F.J. Schaffner) -, mas Biohackers tem sua dose de originalidade: constrói sua narrativa trabalhando o contraste entre o espaço acadêmico e científico mais sério (a Universidade, o Instituto Lorenz etc.) e os pubs e baladas frequentados por uma juventude alternativa que parece fissurada no cyberpunk e que está usando todo tipo de experiência com drogas como ferramentas para o bio-hacking…
Só a futura temporada 2, a ser lançada em 2021, revelará a capacidade de Biohackers em manter-se no interessante campo de questionamento filosófico e sociológico em que se pôs, ou se vai se perder num labirinto de cenas de ação frenéticas que apenas distraem a platéia das questões mais cruciais. De todo modo, esta é uma série importante por desvelar os dilemas e os desafios envolvidos neste fenômeno emergente, ainda por nós vastamente desconhecido, que é o biohacking.
Foi após o “convívio” com esta série que descobri, por exemplo, todo um amplo campo de pesquisas – fiquei sabendo que está previsto para 2021, em Amsterdam, o maior congresso (summit) de biohackers que já houve, com o tema Hack the Ego; que revistas científicas sérias tem se debruçado sobre o retrato que a série da Netflix faz do contexto real das universidades de medicina e institutos de genética na Europa atual, como fez este artigo de Dov Greenbaum na Science (2020); que artistas gráficos vem trabalhando na criação de posters que sintetizam promessas do biohacking; e que livros estão sendo publicados sobre o tema em profusão…
Com a popularização de produções culturais da estirpe de Biohackers – que conta a distribuição global da Netflix e atinge assim as massas, mundo afora, de maneira impactante -, o que temos a oportunidade de fazer, acredito, é uma reavaliação radical das nossas noções costumeiras acerca dos “hackers”.
Muitas vezes lançada como uma pedra pejorativa, a palavra “hacker” merece ser limpada da carga negativa, experimentada em toda sua complexidade e novidade. O termo hacker veio incorporar-se ao nosso léxico com uma força inaudita – é um conceito do qual não nos livraremos tão cedo, e que parece ir mutando com o tempo de maneira a tornar-se ainda mais pervasivo. Quem hoje estuda as relações entre humanidade, tecnologia e ciência não consegue escapar de cair no labirinto de reflexões envolvendo o tema dos “hackers”.
No Brasil, sem dúvida, Gilberto Gil é um dos principais responsáveis por este repensar radical que aqui estou propondo, na esteira da convivência com Biohackers: Gil mesmo confessou-se como um “Ministro Hacker” e ajudou-nos a desvelar, para além da caricatura difamatória que às vezes na mídia se faz do hacker, pintado como baderneiro, anarquista, destruidor da segurança de sistemas empresariais e bancários etc.
O hacker como positividade rebrilha no discurso de Gil, o ministro tropicalista, e hackear o sistema agindo a partir de suas entranhas começou a de fato ser levado a sério como estratégia de transformação de mundo. Com o advento de séries como Biohackers, temos a chance de massificar este debate sobre o hacking em suas várias facetas, em seus perigos e possibilidades, em suas diferentes acepções e nas práticas diversas (e às vezes contraditórias) com que se manifestam os hackers.
Bem-vindos, também, a um novo mundo, incapaz de retornar ao seu antigo normal, onde vozes altissonantes em um caos pós-deus levantam-se, juvenis, para elencar entre seus novos heróis hackers e whistlebowers, cujas criações chamam-se Wikileaks, The Intercept ou Mídia Ninja… Emerge uma geração que trata como seus mais autênticos heróis a Greta Thunberg, o Aaron Swartz, a Alexandra Elbakyan, o Snowden, o Assange.
Uma geração que não morrerá quieta no pesadelo-com-ar-condiconado do Armagedon climático e que hoje começa a perceber que a revolução presente já não pode existir sem hacking. Aliás, o espectro das entidades passíveis de serem hackeadas não cessa de ampliar – e nossos próprios corpos e suas consciências encarnadas são os próximo limites que nós, humanos, alegremente nos apressamos em transgredir. A punição, seu tamanho, intensidade e fúria, quem dirá é o porvir.
Alexandra Elbakyan, criadora do Sci-Hub, foi descrita como A ROBIN HOOD DA CIÊNCIA em matéria da RT, assista ao vídeo em que Alexandre, uma das hackers mais célebres do mundo, explica “why she has broken copyright and piracy laws to make some 49 million scientific articles available for free on her ‘Sci-Hub’ website”:
Publicado em: 27/11/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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